29/04/2013
Baseado na notícia da revista Língua
De tempos em tempos ressurgem discursos inflamados defendendo a preservação da pureza das línguas e das culturas (para não falar da pureza racial, que é o que todos conhecemos como racismo). Em nome desse ideal, tenta-se manter os índios em estado de isolamento cultural, privando-os do acesso a bens e conquistas da nossa civilização - o que, na prática, os reduz a cidadãos de segunda classe -, ou então procura-se proteger a língua das "invasões bárbaras" representadas pelos estrangeirismos. Essa crença na existência de raças, culturas e línguas sem mistura é fruto do desconhecimento dos próprios mecanismos da evolução humana. Afinal, a ciência mostra que, desde os primórdios da humanidade, a miscigenação é regra e não exceção.
Mesmo sociedades ditas primitivas, que parecem ter-se desenvolvido isoladas, nunca estiveram imunes à troca de bens materiais e culturais. Foi assim que o arco e flecha, a cerâmica, a agricultura, a metalurgia, a roda, chegaram a povos muito distantes daqueles que os criaram.
Decalque
Da mesma forma, os empréstimos linguísticos, sobretudo de palavras, são mais frequentes do que supõem (ou gostariam) os puristas. É que muitas de nossas palavras não são sentidas como empréstimos, porque seu caráter estrangeiro está mascarado pela grafia ou tradução de morfemas, o chamado decalque.
Mas por que importamos palavras? Pela mesma razão por que importamos objetos, ideias e práticas. Junto com a coisa vem o nome. Seja uma fruta ou comida exótica como o kiwi ou o sushi, seja um artefato tecnológico como um laptop ou um telefone celular, seja um fenômeno ou ideologia (o liberalismo, o budismo, a ioga, a globalização). Algumas línguas altamente cosmopolitas, como o inglês e o francês, importam e exportam palavras com grande desenvoltura. Isso porque a França e a Inglaterra (e mais modernamente os Estados Unidos) sempre foram centros de inovação técnica e cultural e nações colonialistas, que mantiveram contatos com povos de todas as partes do mundo. Mas nem mesmo países pouco inovadores e refratários à influência externa escapam ao intercâmbio linguístico-cultural.
Apropriação
O empréstimo, de palavras e coisas, deveria chamar-se apropriação. Pois se trata de empréstimo a fundo perdido e sem consulta prévia ao cedente. Manuel Said Ali, emDificuldades da Língua Portuguesa , diz:
"Para designar as contribuições adventícias com que se aumenta o léxico de um idioma, servem-se os linguistas de um termo de extraordinária polidez: 'empréstimos', emprunts(francês), loan-words (inglês), Lehnwörter (alemão). Empréstimos que nunca se restituem; dívidas que jamais se resgatam, salvo com outro empréstimo. Na linguagem faz-se isto sem cerimônia. Não se propõe nem se pede. Tira-se".
A importação de um vocábulo se dá sempre em etapas. Segundo Louis Guilbert ( La Créativité Lexicale ), num primeiro momento, o termo estrangeiro é introduzido num dado ato de fala em referência a um significado próprio à língua estrangeira. É o que ele chama de xenismo , isto é, termo que permanece estrangeiro. Nessa categoria entram os nomes próprios de pessoas, rios, cidades e todas as palavras que exprimem realidades sem correspondente na língua do falante.
O empréstimo propriamente dito se inicia no momento em que se introduz na sociedade o objeto ou conceito designado na língua estrangeira, junto com o termo que o designa, ou quando falantes recorrem ao termo estrangeiro em referência a significado que já tenha denominação própria em sua língua. A essa nova situação, em que a palavra ainda conserva seu caráter estrangeiro, mas já se incorporou aos hábitos dos falantes, Guilbert dá o nome deperegrinismo . Segundo ele, o empréstimo se consolida quando, dada a generalização de seu uso, a palavra se integra de tal modo ao léxico que não é mais sequer percebida como estrangeira (exceto, às vezes, por uma grafia estranha ao sistema ortográfico). Esse é o caso de "abacaxi", "futebol" e "software".
Peregrinismo
Em muitas línguas os xenismos são grafados com caracteres itálicos. Já os peregrinismos têm diferentes tratamentos conforme o idioma. O francês e o inglês, que têm ortografias bem flexíveis, em geral não exigem a adaptação gráfica dos empréstimos. Por isso, temos em francês wagon (vagão) e stocker (estocar), assim mesmo, com "k" e "w", embora essas letras não sejam usuais em francês. Do mesmo modo, o inglês tem façade (com "ç"), fête (com circunflexo) e naïve (trema). Tais termos nunca são grafados em itálico, o que indica a convivência pacífica de grafias de diferentes origens.
Até um idioma tão "nacionalista" como o italiano traz biberon, clic, computer, mouse, festival, terminal, bus, club, leader, standard, consumer, partner, baseball, est, ovest, nord, sud , grafadas sem itálico. Ou seja, palavras efetivamente incorporadas ao italiano. Termos alemães de procedência estrangeira conservam a grafia original e tampouco são grafados em itálico.
Nossas gramáticas exigem o itálico em todas as palavras de grafia estrangeira, não importa o quanto elas sejam frequentes em português ou o quanto já estejam aclimatadas em nosso idioma. Por vezes, recomendam até o aportuguesamento da grafia ou o decalque com elementos vernáculos, como fazia Castro Lopes, criador dos termos "ludopédio" (futebol) e "convescote" (piquenique).
As tentativas de tradução dos estrangeirismos geralmente fracassam porque as pessoas resistem em substituir uma palavra já consagrada pelo uso, ainda que estrangeira, por outra, criada artificialmente, ou porque esses decalques simplesmente soam pedantes e ridículos demais (como chamar "chofer" de "cinesíforo"). Isso sem falar que os vocábulos propostos são igualmente estrangeiros, apenas são greco-latinos e não franceses ou ingleses.
Já o aportuguesamento é algo que deve ocorrer naturalmente, como se deu com "futebol" e "buquê", e não de modo forçado, o que leva a formas igualmente artificiais, como "garção" e "acordeão".
Tratamento
Quanto a pôr em itálico palavras de origem estrangeira, mesmo as de uso corrente, regra que, como vimos, é desconsiderada pela maioria das línguas, cabe a pergunta: se pop e rockdevem assim ser grafadas, então por que não se faz o mesmo com "tango" e "rumba", igualmente estrangeiras? Só porque terminam em vogal? Só porque não contêm "k", "w" nem "y"? Se fosse assim, até "quilowatt" deveria ser escrita em itálico. (Em Portugal há o estranhíssimo "quilovátio".)
Enfim, a nacionalização forçada de estrangeirismos, além de revelar xenofobia e ignorância da dinâmica das línguas, ainda produz situações estranhas como chamar site de "sítio" (que no Brasil é pequena propriedade rural) ou grafar "*saite", na contramão das outras línguas.